foto de Spencer Tunick

domingo, 25 de dezembro de 2011

Meio dia

Não consigo escrever-te
Melhor me inscrever em ti

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O tato que não possuo (ou Me ouça, olfato!)

Que eu sinta o perfume de tu
Quando não estiveres aqui
- É o que peço a cada noite

Tu que és o meu agora, vida
Estagnada em imaginações
Do amor que sinto, tua pele

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Da boca do plexo da aorta

qualquer palavra que diga
que ame, escrita, pintada
gritada, pichada, escarrada
do sangue que não te cobre
mas te permeia o meandro
que te envergonhas a face

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A falta que me demove

A minha dor não tem nome
ou tem e não quero dizê-lo
por preguiça ou desdém de
quem não sabe o que quer
eu vou e apago teu nome
da boca que não diz o senti-
mento que não sente, não
mente, não minto a mim
porque a mim não me foi
dado desdizer o que sinto.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Rascunho de um começo

Ato I
Quando do sexo se tatuam disparidades ridículas, quando do amor se machucam verbos de pudor, e quando da diferença se juram profetas e poetas indignados, quiçá embriagados, a essência de uma semelhança se faz dessemelhante, contraditória. E uma contradição vaidosa, puramente marola, porquanto existe um mar todo atrás: uma árvore tapando a visão da floresta. E uma contradição grotesca, das que não merecem ser consideradas e são.
Ah, o real errado! quanto dói por dentro e corrói este choque desnecessário, esta presença frustrante, mas que não está senão enraizado. É a dor irrazoável que percorre o mundo da desistência de tão forte e persistente. E tão profunda.
E das profundezas de um pensamento também irrazoável, brotam esperanças e é como se todas não passassem de um sonho. Porém, como tal, podem ser desenhadas, podem ser recontadas, recortadas, arrumadas, e até reinventadas. Tudo depende de um ponto de fuga e da própria fuga – mesmo que momentânea, mesmo que privada do sucesso.

Ato II
Da privada que agora jaziam cocôs, uma criança, não se sabe ao certo a que sexo pertencia, saía saltitando feliz, como se tal necessidade não fosse expelida de seu corpo há tempos. Era como se o costumeiro deixasse de assim o ser e passasse para uma nova classificação, daquelas que representam difícil acesso, daquelas que requerem prova antes da eficácia. Enfim, a criança saltitava feliz.
Como cocôs e xixis são iguais! O sexo não faz diferença com a consistência deles. A idade também não. Por vezes, sequer a espécie a faz, considerando que o cocô de um humano e de um cachorro é deveras parecido, senão igual. Diga-se de passagem, possuem até o mesmo odor. Fedor.

Ato III
O que é o sexo senão vontade de trepar?

domingo, 30 de outubro de 2011

A extensão da minha epiderme vive em ti

caiu uma lágrima
do olho do céu
que me molhou de tristeza

a flor que brotou foi de dor
essa que me preenche
o tempo – vazio – da distância

duas manhãs não te vejo
e me pego, pelego
entre a chama e a cama

[eu queria ser a tua pele.]

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

vou te escrever um poema

vou te escrever um poema brega.

não te chamarei de amigo
porque outros assim já fizeram
e o fazem bem melhor que eu

não dissertarei sobre amor
porque como a liberdade
não optar por ela já é vivenciá-la

tampouco falarei do que passamos
lado a lado porque depressivo
o meu tempo agora acontecer
do que se passou

estes versos envergonhados
estão sendo para verbalizar
o fenômeno saudade
que sentirei
que sinto
e que existe
nessa distância toda
às vezes chamada silêncio
às vezes despresença

e qualquer final aqui
seria pra te impressionar
.
.
.

sábado, 15 de outubro de 2011

esboço I

sóbrias e ébrias
tua companhia

(não me perguntes
desse silêncio!)

tua poesia a mim
me é dada pelo
teu olhar, coisa
vertiginosa, suave

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Visto que tu me faz ser, visto-me de tu

Teu perfume
enfurnado
pelo vidro fechado
de teu carro
me desatenta
qualquer atenção
que forçoso finjo,
me desalenta, porém,
por não poder tocar-te
o corpo nu
– no mais, por não
poder sentir-me,
à medida que tua extensão
é parâmetro
para eu me notar
a epiderme.

Carta ao Sentir

Papel em branco que me aguarda ansioso,

venho por meio desta faca maquiada de caneta bic tatuar em você minha angústia fenomênica transitada em julgado na forma de palavra.
É a síntese do necessário.

Com a vênia devida,
Subscrevo.

Teu silêncio és uma orquestra de sangue

Quero fazer de minhas vontades
uma pirâmide de cartas de baralho
que qualquer vento – silêncio –
é capaz de desmoronar.

Este o corolário de minhas paixões
milimetricamente arquitetadas
sobre o sonho que vivo no gerúndio.

(Se tu me quisesses
me convidarias pra sair

eu te quero, saibas!
& te sinto ao meu lado
a cada tom de tua voz muda.)

sábado, 10 de setembro de 2011

Meu sangue te sugou

I
Tua língua me pediu para ficar.

II
Mandei uma mensagem dessas que toca o celular e vibra a alma e tu me respondeu dentro dos próximos cinco minutos – o tempo suficiente e necessário para manter equilibrada a ansiedade – e como que se me quisesse, e me querendo e eu te querendo, saímos à tardinha, na sombra das ruas underground, pr’um filme qualquer, pr’um motivo qualquer que te colocasse ao meu lado (confesso, agora, que precisei de tu pra esquecer o presente desgostoso do presente). Os curtas acabaram. Tu, ao final, me perguntou o que achei, qual preferi, e eu não sabendo ao certo disse que achei tudo estranho, que não gostei. Tu concordou e tudo treslucidou. Aí eu te queria mais tempo por perto e convidei pr’uma cerveja despretensiosa, pr’uma companhia que me alegra a vida e só. Vai que tu quisesse ficar mais? vai que a gente jantasse juntos como há muito não havia? vai que o tempo pudesse brigar com a lógica e andar em passos lentos? O acontecido foi que conversamos sem o tempo futuro incomodar, sem o dia seguinte chacoalhar a razão batendo incessante à porta, sem querer sair de perto um do outro; ou eu de tu. [juro, Papel, não mentirei a você! minha sinceridade será tatuada a sangue em teu branco.] Quis perpetuar o instante de dois e minhas tentativas restaram frutíferas. Tu me falou das tuas verdades, das tuas tristezas, e de tudo o que se conversa em uma mesa de bar durante cinco horas, banhadas do assunto que nunca conversamos, da conversa que nunca tivemos. Eu te falei o que quis te falar naqueles versos, nem lembro, ou lembro e isso me é desimportante. O clímax foi quando dissertamos sobre o que faríamos depois & o depois se transfigurou no agora, saindo, eu e tu, pr’uma boate que serviu de bar, de carinho e de qualquer coisa que signifique nossas pernas se roçando, nossas mãos se tocando e minha boca te sentindo a língua. Claro que o que se procedeu foi mais, não tenho dúvidas, mas não pra mim, e sim pra tu, já que foi tu quem disse que tua amiga falou que combinávamos, foi tu quem disse que teu namorado imaginava que você me experimentaria, e foi tu quem me quis na tua casa, mesmo eu propondo, sem representar minha vontade, que eu fosse embora, naquela caminhada antes e depois do metrô. Eis que entrei na tua morada, vi as cinzas da cachorra no pote defronte à porta, sentei no sofá ao teu lado, e tu propôs, envergonhada, que subíssemos pro quarto já que a janela da sala, às cinco da manhã, nos propagandeava. A gente tirou a roupa, tu me massageou como nunca, eu fingi uma sabedoria inútil, e pelos pêlos a gente dormiu abraçados. No dia seguinte tu me chupou. (Confesso, também, que tua boca me fez sentir mais vivo.) Mas a tua empregada me apressava como se alguma realidade precisasse existir. Fui embora em tchau fugaz. À tarde, mandei uma mensagem sem minh’alma vibrar e tu respondeu bem. É que aí acreditei no amor. Só que o cimento da cidade de São Paulo me afastou de tu, o cimento da cidade que transforma tua vontade em repressão me afastou de tu, e, mesmo com o tempero de árvore na Pôr-do-Sol, esse cimento todo me afastou de tu. Como se tu quisesse te conhecer, tu fechou teus olhos.

III
Fechar os olhos não apaga o fora.

A cara do silêncio (ou Orquestra sinfônica de palavra)

Se eu te narrar meu conto,
tu sairás correndo
e nem olharás para trás,
rasgarás todas as cartas
que te entregarei,
beijarás teu namorado
em todos os olhares
nos quais em tu me agarrarei,
ou, no caso de ele não estar
ao teu lado, eu nem existirei
no defronte do teu silêncio reticente.

Ódio ao vício (ou Ode a isso)

Eles são iguais a nós, mas os olhos do doutor sociedade não os enxergam, mesmo estando eles prostrados no chão sujo do centro da cidade, porque eles são o que há de mais humano em nós: vontade em potência; não me venham os senhores advogados, os excelentíssimos magistrados, os doutos promotores de justiça, ou qualquer coisa que os valha (leia-se qualquer profissão que na pífia tentativa vã de existir se julga sobre as demais) cuspir leis que não servem senão para regulamentar relações distantes da que o quase morto de fome vive nas longas 24 horas de um dia do relógio burguês.

domingo, 4 de setembro de 2011

Ensaio sobre quando o tempo fica à margem II

I
verbos que neste papel
em branco jazerão
busco em vocês a liberdade
que o pensamento
não me permite viver

II
várias foram as vezes que esbocei palavras a fim de me desenlouquecer, p’ra vomitar este verme que me estremece o corpo e dói nos dias que não passo ao teu lado, e nada (como haveria de ser!), mas persisto e a cada nova tentativa antiga procuro redigir sinfonicamente estes vocábulos p’ra te impressionar; por vezes os sustenidos podem soar estranhos, é que a estética do meu dizer é tão marginal que, por mais clássica, não a reconhecem; mas não te percas nas entrelinhas de um bemol

III
te sonharia caso pudesse pensar
em outra coisa senão tu

IV
minha voz desnuda muda o tom das palavras que te direi, subo uma escala p’ra dissertar que de nada valem as mentiras – se te quero é porque meu corpo te deseja!, sem aspas conduzindo à delicadeza vazia da palavra macia; mas não nego que enfeito o meu quarto com o teu perfume

V
eu não só te queria
eu te seria

VI
há tanto quero escrever uma carta p’ra você, evidenciando mentiras, dissertando sobre minha dieta de mau senso, sobre meu teórico suicídio amoroso; e esta está sendo a carta, porque desde quando você se tornou meu foco, ou, desde quando conversamos você virou poesia p’ra mim, você virou tudo porque desarrumou o aqui dentro e porque qualquer coisa era você; ai!, de quando descendo a rua, a ladeira que hoje é memória, voltei correndo em passos lentos p’ra casa, percebendo o verde do mato que tem naquela praça, o rosa da orquídea agarrada à árvore – imperceptível a olhos acostumados –, os degraus que eram todas aquelas ruas da distância que nos separava: poucas casas; a mentira do tio, da capoeira, do barbeiro, de tudo o que fosse p’ra me deixar mais tempo ao teu lado, como se o tempo pudesse resolver morrer (o tempo não morre, ele é no gerúndio, e a nossa proximidade se tornou abismo); inventei pseudônimos, sufoquei vários papeis de tantas palavras que precisavam ser ditas e inventei algumas, inventei momentos futuros, o passado, o eu p’ra te ter por perto: eu não era torcedor, contei verdades, mas falava de futebol p’ra parecer menino moleque; descobri que podia me sentir bem – precisava te ter ao meu lado –, descobri que o amor é uma coisa escrota, ironicamente, porque escrevendo agora escrevo pieguices, besteiras, e ainda sim tenho coragem de tatuá-las neste papel, por mais que eu possa jogar ele fora a qualquer instante; minto p’ra mim sempre p’ra não pensar em ti e gosto de pensar em ti, de forma que odeio pensar porque percebo que sempre sonho no que diz respeito ao teu nome, o teu nome que já não me arrepia mais, mas, ah!, se eu imaginar a tua voz, o teu cabelo liso e o teu carinho falando comigo, se eu lembrar de você real e não do que me representa você... e de como é difícil lembrar o teu cheiro, como dói; você que hoje não é senão retrato p’ra mim, você antes era o meu pensamento quando resolvia viver, você era o meu próprio eu; você me fez mau, eu não precisava de mais alguém – se você resolvesse viajar, eu nem levava roupas; você foi a paixão que quebrou tudo: eu não sabia mais estudar, eu não sabia mais ser amigo, eu não sabia mais ser filho; aliás, de tudo fazia p’ra te ver, nem que fosse passar em frente a tua casa, num caminho absolutamente burro, nem que fosse fazer os amigos passarem em frente a tua casa, p’ra ver se você estava por lá, nem que fosse pegar o pé de uma flauta doce (aquela parte pequena no final da flauta, sabe?) e uma flor amarela no chão suja, colocar esta dentro daquela, e sonhar a beleza do gesto de deixar na porta da tua casa, e eis que sonhando você chegou de carro com amigos, e eu sonhei mais um pouco pensando em destino – pensando em mentiras que desacredito; você era o assunto de qualquer hora, você era a hora p’ra qualquer assunto

VII
eu morreria junto com você sem pensar
em qualquer outra pessoa & eu ainda penso
na possibilidade de a gente fugir e deixar
o tempo, que é o futuro, à margem da nossa vida.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A grama da praça te espera

Prólogo
O sol se põe e eu me lembro de você.

Logo
Como se as coisas todas te pertencessem e eu fosse só armário, como se as cores todas te pertencessem e eu fosse só pincel, como se os cheiros todos te pertencessem e eu fosse só corpo, como se os choros todos te pertencessem e eu não chorasse.

Epílogo
O sol se pôs sem palmas: fúria do fogo atrás dos prédios em película.

domingo, 31 de julho de 2011

Se não fosse senão

que teu nome se não
me diz mais nada
me diz senão
que ainda te escuto

versículo três

os meus dias passam devagar de vagar tanto pelos teus pelos.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Reverbero o verbero do verbo (ou A porra)

o que me aporrinhas
é teu verbo áspero
& teu olhar azul
envergonhado

terça-feira, 19 de julho de 2011

Soneto internado em terno

Eu recuso a tecnologia por tu.
E vou escrever estes verbos
na modernidade d'uma olivetti
p'ra provar que sou sublime.

Que se eu ouso pensar em algo
senão tu, minha mente em flagelo
se põe a viver no instante agora
corpulento a vida depressiva.

E na entrelinha dos versos
nossas roupas esquecidas
se perdem pelas barracas

e em troca restam os pelos
que é o futuro peticionado
p’ra deixar de ser engravatado.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

ao arrepio

eu quero maldizer o mundo
em linhas de um caderno antigo
jogado às traças e mais bonito
que as letras mortas & virtuais
do computador que te me sufoca
pelas conversas arquitetadas
no lado de trás das retinas

porque tu que me és
meu ser em tempos
de apaixonite aguda

ventos que os pelos carentes sentem
nas noites que não passo ao teu lado.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

verbos e verbetes p'ro agora

parasita abstrato
que decepa flores
não tenho olfato
não olvido odores
no ouvido as dores

no vão do porão
da memória
as cores da dor
os odores da cor
as dores da flor

(tu te deitas, não me ouves
& a orquestra de silêncios
me vive vestida de palavra)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Poliglota de mim mesmo (ou Estudo sobre Leminski)

fala fosse crônica
poesia fosse silêncio
estudo fosse sexo

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O amor nos tempos do iphone

tu acabou de me ligar
e dei vida à mentira
de pelúcia chamada destino

(sem título)

te sonharia
caso pudesse
pensar

em outra coisa senão tu.

sábado, 7 de maio de 2011

Monólogo a dois

tu não precisas cumprir meticulosamente tua burocracia, Paula! Essa de ficar esboçando mentiras não ressoa qualquer acorde desinteressado em mim. Eu sei o que tu queres e, hoje, quero também. Então vens.

domingo, 1 de maio de 2011

Je ne suis pas prisonnier de ma raison

“(...) Não me creio indo para um casamento com Jesus Cristo por sogro.
Não sou prisioneiro da minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade na salvação: como obtê-la? Os gostos frívolos me deixaram. Não é mais necessária a devoção nem o amor divino. Não sinto falta da moda dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo e caridade: mantenho o lugar no topo dessa angélica escada de bom senso.
(...) Deveria ter meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho - e o inferno da carícia; um concerto de infernos.
Morro de lassidão. É a tumba, vou para os vermes, horror dos horrores! Satã, farsante, queres me diluir com teus feitiços. Me queixo. Me queixo! Um golpe do tridente, uma gota de fogo.
Ah! voltar à vida! Lançar os olhos sobre nossas deformidades. E este veneno, este beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo! Meu Deus, piedade, esconde-me, me aguento mal! - Estou oculto e não estou.
É o fogo que cresce, com seu condenado”.

(in Uma temporada no inferno, página 37 e 47, de Arthur Rimbaud)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

drama das 18h

chega de compostura ao pensar teu nome
chega de decoro ao sentir teu cheiro
chega de pudor, de honra
& não chegue de saudade
porque a dor de esperar o amanhã
é que poetiza o tempo.

(Hei de sentir essa dor.
Te escrevo para enfim amar-te.)

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A moral dos sóbrios

a mãe que não pode
ficar com a filha
& grita a dor bêbeda
de estar numa sala
rodeada de conciliadoras
sufocando todos os poros
do corpo que sua e soa
o silêncio dos alcoólatras
estigmatizados
pela sociedade brasileira

sexta-feira, 8 de abril de 2011

IV

“Bem entendido, eu sabia que também nós procedíamos, ocasionalmente, a condenações. Mas diziam-me que essas mortes eram necessárias para construir um mundo em que não se mataria ninguém. Era verdade, de certo modo, e, no fim de contas, talvez seja eu que não sou capaz de me manter nesse gênero de verdades. O que é certo é que eu hesitava. Mas pensava no mocho, e a coisa continuava. Até ao dia em que vi uma execução (estava na Hungria) e a mesma vertigem que havia atacado a criança que eu era obscureceu os meus olhos de adulto.
Nunca viu fuzilar um homem? Com certeza que não. Isso faz-se, em geral, por convites, e o público é escolhido antecipadamente. O resultado é o que o senhor conhece pelas estampas e pelos livros. Uma venda, um barrote e, longe, alguns soldados. Pois bem, não é nada disso. Sabe que o pelotão se coloca a um metro e cinquenta do condenado? Sabe que, se o condenado desse dois passos em frente, bateria com o peito nas espingardas? Sabe que, a essa distância, os executores concentram todos o tiro na região do coração e que, entre todos, com as suas grandes balas, fazem lá um buraco onde se poderia meter o punho? Não, o senhor não sabe isso, pois são pormenores de que não se fala. O sono dos homens é mais sagrado que a vida dos empestados. Não se deve impedir as pessoas de dormir. Seria preciso mau gosto, e o gosto consiste em não insistir, toda gente o sabe. Mas eu, por mim, não dormi bem desde esse tempo. O mau gosto ficou-me na boca, e desde então não deixei de insistir, quer dizer, de pensar.
Compreendi assim que eu, pelo menos, não tinha deixado de ser um pestiferado durante todos esses longos anos, em que, contudo, com toda a minha alma, eu julgava lutar contra a peste. Soube que tinha indiretamente contribuído para a morte de milhares de homens, que tinha até provocado essa morte, achando bons os princípios e as ações que a tinham fatalmente originado. Os outros não pareciam perturbados por isso, ou, pelo menos, nunca falavam disso espontaneamente. Eu tinha um nó na garganta. Estava com eles e, contudo, estava só. Quando me acontecia exprimir os meus escrúpulos, diziam-me que era preciso refletir no que estava em jogo e davam-me razões muitas vezes impressionantes para me fazerem engolir o que eu não conseguia deglutir. Mas eu respondia que os grandes pestiferados, os que vestem togas encarnadas, dispõem também de excelentes razões nesses casos e que, se eu admitisse as razões de força maior e as necessidades invocadas pelos pequenos pestiferados, não poderia rejeitar as dos grandes. Eles faziam-me notar que a boa maneira de dar razão às togas encarnadas era deixar-lhes a exclusividade da condenação. Mas eu respondia então que, se cedia uma vez, não havia razão para parar. Parece-me que a história me deu razão: hoje cada qual mata o mais que poder. Andam todos no furor do assassínio e não podem proceder de outra maneira.
O que me interessava, em todo o caso, não era o raciocínio. O que me interessava era o mocho ruço, essa suja aventura em que bocas sujas e empestadas anunciavam a um homem que ia morrer e preparavam tudo para que ele morresse, após noites e noites de agonia, durante as quais ele esperava ser assassinado de olhos abertos. O que me interessava era o buraco no peito. E dizia a mim próprio, entretanto, que, pelo menos pela minha parte, recusaria sempre aceitar uma razão, uma única – compreende? – para essa repugnante carnificina. Sim, escolhi uma cegueira obstinada, enquanto esperava poder ver mais claro.
Desde então, não mudei. Há muito tempo que tenho vergonha, uma vergonha mortal, de ter sido, ainda que de longe, ainda que na boa vontade, por minha vez, um assassino. Com o tempo, compreendi apenas que até os que eram melhores que outros não podiam impedir-se, hoje, de matar ou de deixar matar, pois estava na lógica em que eles viviam, e que não se podia fazer um gesto neste mundo sem se correr o risco de fazer morrer. Sim, continuei a ter vergonha, aprendi isso – que estávamos todos na peste – e perdi a paz. Ainda hoje a procuro, tentando compreendê-los a todos e não ser o inimigo mortal de ninguém. Sei apenas que é preciso fazer o necessário para deixar de ser um pestiferado e que só isso nos pode fazer esperar a paz, ou, na sua falta, uma boa morte. É isso que pode aliviar os homens e, se não salvá-los, pelo menos fazer-lhes o menos mal possível, e até, às vezes, um pouco de bem. E foi por isso que eu decidi recusar tudo o que, de perto ou de longe, por boas ou más razões, faz morrer ou justifica que se faça morrer.
É ainda por isso que esta epidemia não me ensina nada, senão que é preciso combatê-la ao seu lado. Sei, de ciência certa – sim, Rieux, sei tudo na vida, bem vê – que cada um traz em si a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está indene dela. Sei ainda que é preciso vigiar-se sem descanso para não se ser levado, num minuto de distração, a respirar para a cara de outrem e a transmitir-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto – a saúde, a integridade, a pureza, se quiser – é o efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais vergar. O homem honesto, aquele que não infecta quase ninguém, é aquele que tem o menor número de distrações possível. E se é preciso ter vontade de tensão para nunca se estar distraído! Sim, Rieux, é bem fatigante ser um pestiferado. Mas é ainda mais fatigante não querer sê-lo. É por isso que toda a gente se mostra fatigada, visto que toda a gente, hoje em dia, se encontra um pouco pestiferada. Mas é por isso que alguns que querem deixar de o ser conhecem um extremo de fadiga de que já nada os libertará a não ser a morte.
Até lá, sei que já não valho nada para este mundo e que a partir do momento em que renunciei a matar me condenei a um exílio definitivo. Serão os outros quem fará a história. Sei também que não posso, aparentemente, julgar esses outros. Falta-me uma qualidade para ser um assassino razoável. Não é, pois, uma superioridade. Agora, porém, consinto em ser o que sou – aprendi a ser modesto. Digo apenas que há neste mundo flagelos e vítimas e que é necessário, tanto quanto possível, recusarmo-nos a estar com o flagelo. Isto lhe parecerá talvez um pouco simples. Não sei se é simples, mas sei que é verdadeiro. Ouvi tantos raciocínios que por pouco me não deram volta à cabeça, mas que deram volta a bastantes outras cabeças para as fazer consentir no assassínio, que compreendi que toda a desgraça dos homens provinha de eles não terem uma linguagem clara. Decidi então falar e agir claramente, para me pôr no bom caminho. Por consequência, digo que há flagelos e vítimas, e nada mais. Se, dizendo isto, me torno eu próprio um flagelo, não é por minha vontade. Procuro ser um assassino inocente. Bem vê que não é uma grande ambição.
Seria necessário, sem dúvida, que houvesse uma terceira categoria, a dos verdadeiros médicos, mas é um fato que não se encontram muitos e que isso deve ser difícil. Foi por isto que decidi pôr-me do lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os estragos. No meio delas, posso, ao menos, procurar como se chega à terceira categoria, isto é, à paz”.

(in A peste, páginas 272-276, de Albert Camus)

terça-feira, 15 de março de 2011

A arte de dormir no trabalho

Tribunal. 17h12. Ar condicionado condicionando todos ao frio doentio em que o excelentíssimo masturba seus neurônios à procura de uma decisão justa. Tantos advogados de um lado da mesa, dois do outro. O segredo de justiça em questão é o reconhecimento de vínculo matrimonial. Ao lado dos concisos, uma anciã cheia de jóias. Ao lado da creche de postuladores, um corpo ginasta de rosto maquiado. No vão desse jargão jurídico, um menino de vinte anos abaixa a cabeça, finge ler uma filosofia penal, & sonha.

parágrafo

desespero o suor
de te escrever ao menos
um parágrafo que verse
qualquer prosa
contemporânea,
superlativos (pra ti!) pra te
descrever algum sentimento
romântico, rococós arquitetando
toda uma construção
argumentativa lógica
que te persuada
no sentido de me sentir
mais humano

sexta-feira, 4 de março de 2011

(sem título)

vírgula depois de reticências
continuidade em essência
essência do tempo

25.02.2011

O meu otimismo se expressa da seguinte forma: a vida tem apenas uma condição pra se tornar boa, é necessário se descobrir uma farsa. Dito isto, passo a dissecar uma dissertação. A farsa em minha vida se dá de tal maneira que me imponho escrever estas linhas tão rapidamente pra que minhas próprias ideias não sejam corrompidas por ideias alheias ou pelo esquecimento. A vida se me mostrou pelas vias clichês (e não, pode parecer loucura pra alguns religiosos, mas não ‘tou em meu inferno astral, seja lá que diabo isso for), posso chamar de epifania, mas estaria pensando em Clarice Lispector e, vai vendo, não sou ela! Minha vida se me mostrou d’uma maneira feia pros meus olhos, do que se depreende eu não saber diferenciar o que sou eu em meu ser. Não sei se sou introvertido ou se perpetuo uma depressão. Não sei por que não devo julgar os outros se minha concepção de mundo, se minha ideologia, se minha existência acontece de forma distinta da de um cachorro apenas na medida em que olho o mundo e julgo o que me faz bem. Às vezes me pego dando conselhos amorosos, mas quem sou eu, o que vivi, qual a quantidade de experiências amorosas que já tive pra ter a coragem e a não vergonha-na-cara de dar palpite nos casos dos outros? que tipo de música eu gosto? que tipo de livro? aliás, eu sei ouvir uma música, eu gosto de ler? Eu faço o que faço porque tenho de vontade de fazer ou porque minha cabeça imatura não sabe diferenciar o que gosto do que não? Eu prefiro o humano que se aceita como animal ou o mundo da razão que me coloca por sobre outras formas de vida? Devo ter uma visão universalista e sair por aí pregando ter a pessoa o direito à vida digna, ou devo relativizar e respeitar as diferentes culturas, o costume indígena por exemplo? Talvez a vida esteja aí pra não ser nada, pra estar sendo, ou talvez esta seja apenas uma manifestação do meu pseudo conhecimento e admiração da fenomenologia. Já meu pessimismo se expressa da seguinte forma: eu não sou pessimista, sou triste.

terça-feira, 1 de março de 2011

ca(u)sos

São duas horas e vinte e nove minutos dessa tarde adjetivada, fui dormir perto das duas da manhã, acordei às seis e quarenta da madrugada p’ra ir estudar, e agora o sono resolveu fatigar minhas pálpebras. Cê ‘tá no meio do trabalho, Flaixer, não sonhe dormir! P’ra evitar maiores sonolências, abro o caderno e rascunho estas palavras que você está lendo.
Venho todas as tardes de segunda a sexta-feira p’ra este hospício de pessoas engravatadas, pra ocupar quatro horas da minha não financiada vida boêmia p’ra conhecer a face pública do direito, ou, p’ra ficar sentado dentro de uma sala com pé direito alto – creio ter mais de três metros – na frente de uma máquina tecnológica chamada computador que não me fornece senão um dicionário Aurélio do século XXI, dicionário apelidado de tarefa diária, porque fico descobrindo novas palavras velhas; não, não serei injusto (poderia?), exercito minha anti-monotonia com um jogo de cartas virtuais denominado, pelos próprios criadores do jogo, “paciência”. O mestre doutor excelentíssimo magistrado senta ao meu lado, chega todo dia pontualmente por volta de uma hora e quarenta minutos da tarde, abrindo o portal desta sala com uma força musculosa, quero dizer, digna de vários supinos, momento este que é procedido por um instante fugaz de cerca de dois segundos em que o meritíssimo observa academicamente a atmosfera da sala (talvez esteja conferindo quem está presente e se o ar condicionado ‘tá numa temperatura agradável, talvez). O escrivão é uma figura típica, parece com várias personalidades, gordinho e com uma voz estrondosa, senta ao lado do senhor data venia com “d” e “v” maiúsculos, e sempre trás um minicafé com as devidas justificativas de que “tá quentinho!, acabou de ficar pronto”, p’ra não aparentar bajulador. Toda quarta-feira é dia de audiência: o corredor na frente da sala santificada parece metrô da Sé às seis da tarde. O segredo de justiça, aliás, me impede de contar sobre os casos & causos arquitetonicamente peticionados e persuasivamente acordados. No mais, nunca se esqueça de bater no portal três vezes – no máximo – antes de entrar, esperar o escrivão abrir ou liberar a entrada já que você ousado abriu cauteloso cerca de trinta centímetros, e se referir ao juiz com todos os prenomes cordiais.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Rascunho duma crônica

Antes de começar a escrever,
faço um pacto com o papel:
teu branco não
poderá ofuscar meu garrancho.
Porque no fundo é isto,
uma briga pra ver quem acontece
– se o papel
e todo esse silêncio orquestrado,
se minha mão e toda essa formalidade
de escriba. Mas paro antes de pensar
no que vou escrever e ideias
sobre o equilíbrio me corrompem: não prosarei
palavras sobre balanças, a não ser esta negação;
seria tudo pessimismo? depressão perpetuada?
escolhas introvertidas de alegria?
desistência de um caminho difícil?
E todas essas perguntas não me dizem
mais que uma música parada antes do fim.
E todo fim tem seu começo
na escolha por não ser mais.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Ode ao tribunal (ou Ódio)

aqui entram ternos
engravatados ternos talvez
porque externos aos ternos
são estereotipados

pobres os que querem se internar!

127.

“Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor a minha ideia de os achar belos.
Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse afastar da alma de todos os que me cercam,

Tomar o sonho por real, viver demasiado os sonhos deu-me este espinho à rosa falsa de minha sonhada vida: que nem os sonhos me agradam, porque lhes acho defeitos.

Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas me oculto o rumor da vida alheia ao meu olhá-la, do outro lado.

Ditosos os fazedores de sistemas pessimistas! Não só se amparam de ter feito qualquer coisa, como também se alegram do explicado, e se incluem na dor universal.

Eu não me queixo pelo mundo. Não protesto em nome do universo. Não sou pessimista. Sofro e queixo-me, mas não sei se o que há de geral é o sofrimento nem sei se é humano sofrer. Que me importa saber se isso é certo ou não?
Eu sofro, não sei se merecidamente. (Corça perseguida.)
Eu não sou pessimista, sou triste.”


(in Livro do Desassossego, páginas 148-149, de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

o vagalume emprestado

a luz tem uma casca
que a envolve e resolve
quem entra e quem sai
porque se esconde
em tudo o que é
confim

só a calmaria conhece.

sábado, 22 de janeiro de 2011

versículo um

O sono é mais uma pessoa que desiste de mim & eu corro atrás dele tentando resgatar as migalhas, porque o mal que faço despedaça as coisas pelos caminhos – o asfalto sem flor alguma, a grama bacana da família americana, o carro cheio de cheiro do sexo –, mas não é possível consertar os erros (quebra-cabeça guardado em armário), e eu não durmo pra sentir a dor em toda a extensão de minha nudez; tentar sonhar no silêncio dos olhos abertos.

Canção I

você precisa entender
o poder de escrever
estas palavras na linha
de baixo

em uma linha
todo sentido
não sente mais

em um espaço vazio
todo silêncio
dá voz ao tempo

e tudo o que devia
ser está sendo
e toda palavra
é um fenômeno
preso em verbo

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

ode ao ódio

este poema nasceu
para não ser
poema, crônica
escrita em pé
o verso que diz o verbo
que não se diz
a arte
que te toca
a partitura
da música
que não se ouve
sente
o gozo no chão.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

textículos

a dama da noite
anoitece o drama
e de manhã, reclama
___________________

a manhã briga
com a noite
amanhã
___________________

o tempo
é uma etcétera
reticente

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O outro (ou Haikai crônico)

enquanto isso, existem
pormenores de situações
alheias sendo no mundo