foto de Spencer Tunick

sexta-feira, 8 de abril de 2011

IV

“Bem entendido, eu sabia que também nós procedíamos, ocasionalmente, a condenações. Mas diziam-me que essas mortes eram necessárias para construir um mundo em que não se mataria ninguém. Era verdade, de certo modo, e, no fim de contas, talvez seja eu que não sou capaz de me manter nesse gênero de verdades. O que é certo é que eu hesitava. Mas pensava no mocho, e a coisa continuava. Até ao dia em que vi uma execução (estava na Hungria) e a mesma vertigem que havia atacado a criança que eu era obscureceu os meus olhos de adulto.
Nunca viu fuzilar um homem? Com certeza que não. Isso faz-se, em geral, por convites, e o público é escolhido antecipadamente. O resultado é o que o senhor conhece pelas estampas e pelos livros. Uma venda, um barrote e, longe, alguns soldados. Pois bem, não é nada disso. Sabe que o pelotão se coloca a um metro e cinquenta do condenado? Sabe que, se o condenado desse dois passos em frente, bateria com o peito nas espingardas? Sabe que, a essa distância, os executores concentram todos o tiro na região do coração e que, entre todos, com as suas grandes balas, fazem lá um buraco onde se poderia meter o punho? Não, o senhor não sabe isso, pois são pormenores de que não se fala. O sono dos homens é mais sagrado que a vida dos empestados. Não se deve impedir as pessoas de dormir. Seria preciso mau gosto, e o gosto consiste em não insistir, toda gente o sabe. Mas eu, por mim, não dormi bem desde esse tempo. O mau gosto ficou-me na boca, e desde então não deixei de insistir, quer dizer, de pensar.
Compreendi assim que eu, pelo menos, não tinha deixado de ser um pestiferado durante todos esses longos anos, em que, contudo, com toda a minha alma, eu julgava lutar contra a peste. Soube que tinha indiretamente contribuído para a morte de milhares de homens, que tinha até provocado essa morte, achando bons os princípios e as ações que a tinham fatalmente originado. Os outros não pareciam perturbados por isso, ou, pelo menos, nunca falavam disso espontaneamente. Eu tinha um nó na garganta. Estava com eles e, contudo, estava só. Quando me acontecia exprimir os meus escrúpulos, diziam-me que era preciso refletir no que estava em jogo e davam-me razões muitas vezes impressionantes para me fazerem engolir o que eu não conseguia deglutir. Mas eu respondia que os grandes pestiferados, os que vestem togas encarnadas, dispõem também de excelentes razões nesses casos e que, se eu admitisse as razões de força maior e as necessidades invocadas pelos pequenos pestiferados, não poderia rejeitar as dos grandes. Eles faziam-me notar que a boa maneira de dar razão às togas encarnadas era deixar-lhes a exclusividade da condenação. Mas eu respondia então que, se cedia uma vez, não havia razão para parar. Parece-me que a história me deu razão: hoje cada qual mata o mais que poder. Andam todos no furor do assassínio e não podem proceder de outra maneira.
O que me interessava, em todo o caso, não era o raciocínio. O que me interessava era o mocho ruço, essa suja aventura em que bocas sujas e empestadas anunciavam a um homem que ia morrer e preparavam tudo para que ele morresse, após noites e noites de agonia, durante as quais ele esperava ser assassinado de olhos abertos. O que me interessava era o buraco no peito. E dizia a mim próprio, entretanto, que, pelo menos pela minha parte, recusaria sempre aceitar uma razão, uma única – compreende? – para essa repugnante carnificina. Sim, escolhi uma cegueira obstinada, enquanto esperava poder ver mais claro.
Desde então, não mudei. Há muito tempo que tenho vergonha, uma vergonha mortal, de ter sido, ainda que de longe, ainda que na boa vontade, por minha vez, um assassino. Com o tempo, compreendi apenas que até os que eram melhores que outros não podiam impedir-se, hoje, de matar ou de deixar matar, pois estava na lógica em que eles viviam, e que não se podia fazer um gesto neste mundo sem se correr o risco de fazer morrer. Sim, continuei a ter vergonha, aprendi isso – que estávamos todos na peste – e perdi a paz. Ainda hoje a procuro, tentando compreendê-los a todos e não ser o inimigo mortal de ninguém. Sei apenas que é preciso fazer o necessário para deixar de ser um pestiferado e que só isso nos pode fazer esperar a paz, ou, na sua falta, uma boa morte. É isso que pode aliviar os homens e, se não salvá-los, pelo menos fazer-lhes o menos mal possível, e até, às vezes, um pouco de bem. E foi por isso que eu decidi recusar tudo o que, de perto ou de longe, por boas ou más razões, faz morrer ou justifica que se faça morrer.
É ainda por isso que esta epidemia não me ensina nada, senão que é preciso combatê-la ao seu lado. Sei, de ciência certa – sim, Rieux, sei tudo na vida, bem vê – que cada um traz em si a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está indene dela. Sei ainda que é preciso vigiar-se sem descanso para não se ser levado, num minuto de distração, a respirar para a cara de outrem e a transmitir-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto – a saúde, a integridade, a pureza, se quiser – é o efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais vergar. O homem honesto, aquele que não infecta quase ninguém, é aquele que tem o menor número de distrações possível. E se é preciso ter vontade de tensão para nunca se estar distraído! Sim, Rieux, é bem fatigante ser um pestiferado. Mas é ainda mais fatigante não querer sê-lo. É por isso que toda a gente se mostra fatigada, visto que toda a gente, hoje em dia, se encontra um pouco pestiferada. Mas é por isso que alguns que querem deixar de o ser conhecem um extremo de fadiga de que já nada os libertará a não ser a morte.
Até lá, sei que já não valho nada para este mundo e que a partir do momento em que renunciei a matar me condenei a um exílio definitivo. Serão os outros quem fará a história. Sei também que não posso, aparentemente, julgar esses outros. Falta-me uma qualidade para ser um assassino razoável. Não é, pois, uma superioridade. Agora, porém, consinto em ser o que sou – aprendi a ser modesto. Digo apenas que há neste mundo flagelos e vítimas e que é necessário, tanto quanto possível, recusarmo-nos a estar com o flagelo. Isto lhe parecerá talvez um pouco simples. Não sei se é simples, mas sei que é verdadeiro. Ouvi tantos raciocínios que por pouco me não deram volta à cabeça, mas que deram volta a bastantes outras cabeças para as fazer consentir no assassínio, que compreendi que toda a desgraça dos homens provinha de eles não terem uma linguagem clara. Decidi então falar e agir claramente, para me pôr no bom caminho. Por consequência, digo que há flagelos e vítimas, e nada mais. Se, dizendo isto, me torno eu próprio um flagelo, não é por minha vontade. Procuro ser um assassino inocente. Bem vê que não é uma grande ambição.
Seria necessário, sem dúvida, que houvesse uma terceira categoria, a dos verdadeiros médicos, mas é um fato que não se encontram muitos e que isso deve ser difícil. Foi por isto que decidi pôr-me do lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os estragos. No meio delas, posso, ao menos, procurar como se chega à terceira categoria, isto é, à paz”.

(in A peste, páginas 272-276, de Albert Camus)

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