foto de Spencer Tunick

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

(sem título)

& tudo o que quero nesse momento é morar em você e não me preocupar com o conhecimento que é saber manusear esta caneta por sobre este papel escrevendo nesse instante um garrancho negro pra te dizer silenciosamente que tudo o que quero nesse momento é morar em você

Estar sendo. Ter sido

“ah, eu só entendo de paixão, e paixão é intraduzível
indescritível, você quer dizer também. paixão é aquele lago que dá medo, lembra? o lago Averno
sei. a entrada do Inferno. aquele
entrei nele uma vez. fiquei gigantesco e rubro. cresci
e quem era? ele ou ela?
ela. estupenda, esguia, mãos pequeninas, roía as unhas
estranho
por quê?
não parece passional
você é mesmo idiota. paixão é isso. é não saber porque
e aí?
aí que eu quase morri. perdi o caminho do de dentro de mim. só via girassóis e sombras, ouro e luto. só via contrastes, tocava-lhe o rosto e chorava de alegria
e ela?
ela era muda”

(in Estar sendo. Ter sido, página 33, de Hilda Hilst)

domingo, 12 de dezembro de 2010

teu nome

porque tu existes
é que minha vida bebe
leite materno
e derrama falso mistério
no acontecimento futuro
ai, porque tu existes
minha vida continua sendo
e todo o passado do mundo
que é a vontade de ti, de te
escravizar em mim.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

vinte e nove de novembro de dois mil e dez

desisti de viver de solidão
pensando em você, em você
e nesse teu nome
cheio de figurações
no mundo das letras

– dos dom casmurro’s aos bíblicos papas
teu nome já saiu da minha cabeça
& só tua gasta fotografia gasta minhas horas.

sábado, 27 de novembro de 2010

(sem título)

eu vou te contar
que você não me conhece
eu tenho que gritar isso
porque você tá surdo
& não me ouve

a sedução me escraviza
a você
ao fim de tudo
você permanece comigo
mas preso ao que eu criei
e não à mim
e quanto mais falo
sobre a verdade inteira
um abismo maior nos separa

você não tem um nome
eu tenho
você é um rosto na multidão
eu sou o centro das atenções
mas a mentira da aparência
do que eu sou
e a mentira da aparência do que você é
porque eu não sou o meu nome
e você não é ninguém

o jogo perigoso que eu pratico aqui
ele busca chegar ao limite possível
de aproximação
através da aceitação da distância
e do reconhecimento dela

entre eu e você existe a notícia
que nos separa
e eu quero que você me veja
nu
eu me dispo da notícia
e a minha nudez, parada
te denuncia
e te espelha

eu me delato
tu me relatas
eu nos acuso
e confesso por nós
assim me livro das palavras
com as quais você me veste.

(texto de Fauzi Arap declamado por Maria Bethânia antes da música 'Um jeito estúpido de te amar' do disco 'Pássaro da Manhã', disposto em forma de poesia pelo meu ouvido)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Declaração

"Quantas vezes lhe declarei o meu amor?
Declarei-o verbalmente inúmeras vezes
e o declaram todos os meus gestos tendentes
a você: a minha língua, a brincar com o som
do seu nome, Marcelo, o declara; e o declaram
os meus olhos felizes quando o vêem chegar
feito um presente e de repente elucidar
a casa inteira que, conquanto iluminada,
permanecia opaca sem você; e quando,
tendo apagado todas as lâmpadas, juntos,
no terraço, nos consignamos aos traslados
dos círculos do relógio do céu noturno
ou aos rios de nuvens em que nos miramos
e nos perderemos, declaro-o no escuro."

(in A cidade e os livros, de Antonio Cicero)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Fotografia de poesia

De um lado, um gato observando o movimento das ruas sobre o muro opaco d’uma casa. Do outro lado, uma velha tragando a fumaça de vida atrás das grades d’um condomínio. No hiato, um morador de rua (“indigente” para algumas gentes) andando feliz com sua capa de pano rasgado vermelha.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

(sem título)

época de dama
da noite é aquela
que se anda na noite

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

(sem título)

eu não só te queria.
eu te seria

sábado, 16 de outubro de 2010

(sem título)

"as flores
são mesmo
umas ingratas

a gente as colhe
depois elas morrem
sem mais nem menos
como se entre nós
nunca tivesse
havido vênus"

(in Caprichos & Relaxos, página 42, de Paulo Leminski)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

(sem título)

"Carrego o peso da lua,
Três paixões mal curadas,
Um saara de páginas,
Essa infinita madrugada.

Viver de noite
Me fez senhor do fogo.
A vocês, eu deixo o sono.
O sonho não.
Esse eu mesmo carrego."

(in Distraídos venceremos, página 40, de Paulo Leminski)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Ode ao gerúndio

tudo o que diz
respeito
ao verbo ser

ou é superficial
ou está sendo

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Citação

weeds
"Me convida pra dar um rolê no seu quintal
Você mora em um apartamento de 40 m² com uma janela significativa porque o resto é tudo basculante
Mas me convida pra dar um rolê no quintal
Eu vou te falar da rede que a gente vai ter e do cachorro-feio-mas-mais-bonito-do-bairro chamado Tosco
Aí eu vou fazer uma pipoca de panela, já que a de microondas nunca fica no ponto ideal
Mas a gente vai ter microondas porque a gente não vai ser um casal neo-hippie como o seu amiguinho maconheiro & com consciência pesada que planta a própria maconha e a sua esposa que gosta e tem tanto apreço pelos baseados caseiros
A gente não vai ser maconheiro at all: eu só vou me lesar de você e você só vai se lesar de mim"


estória chinesa: Chove adiante
"No meio do campo, começou a chover. As pessoas corriam em busca de abrigo, exceto um homem, que continuava a andar lentamente.
- Por que você não está correndo? – perguntou alguém.
- Porque também está chovendo na minha frente."

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Me chamem Dom Casmurro

porque quando eu ‘tou sonhando com você, você desaparece no sonho e eu, desesperado e desesperançoso, saio correndo pelos corredores da cabeça, consciente de que as coisas começaram a ruir & alguém aqui fora me chacoalha obrigando a abrir os olhos; quero voltar a sonhar com você! mas os minutos se acabaram; quero voltar a sonhar com você! a realidade ainda pesa os olhos; quero voltar a sonhar com você! mas não posso mais fechar os olhos, e agora me levantam pra colocar os dois pés no chão pr’eu caminhar pro dia-a-dia, terreno infértil, que acontece nada, só postergação e uma graduação e um futuro que, mesmo polidos, brilham o opaco que não ilumina sequer os olhos

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

(sem título)

vida
que
foge

fodida fugida

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Eruditas

II.
te compro um dia e nunca mais
abro, pra manter a forma
e a curiosidade do conteúdo

(sem título)

& era eu e você o que se encontrava naquele quarto escuro, de porta trancada, ao som do nosso silêncio ansioso, esperando o barulho das outras duas portas fechando, pra você, só então, cautelosa, assim que ouvisse o pedido em palavras macias, descer do beliche e se roçar em mim – por que a gente se descobria pelos pêlos mais sutis do corpo – numa fúria interna que era o gozo descontrolado manchando o carpete do teu quarto, e então a gente passava na cozinha, pegava dois copos d’água, um pra mim e outro pra limpar o chão, pra depois, insaciáveis, a gente se recobrir no corpo do outro pelas horas que sobravam

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A crônica queria ser poema

tudo isto
que escrevi num parágrafo só
vai virar poema

Eruditas

I.
ah, Lírio de argila
qu’eu guardo na gaveta
mais esquecida

a tua contradição
me anima solidão

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O poema do acaso

eu queria ser nordestino
eu queria ser sulista
eu queria ser de fora
pra ver a Aurora
Boreal

mas mal posso ser
meu

Prólogo

Alô, alô. Testando. Alô. 1, 2. Testando, testando.
(Tá funcionando, já posso falar? – pensou).

Aqui no microfone
da cabeça
penso ideias
que não deveriam ser ditas
senão para pessoas
em especial.
Mas como a vida me ensinou
a não me poupar, não poupo
inclusive vocês.
Agora, com exclusividade,
deixo algumas ideias
suspensas
nesse mar
de loucos.

O animal
que mora dentro de mim
já quebrou alguns cadeados
e continua com raiva.
Acho que tanta pressão
nessa prisão
não fez bem a ele.
Enfim, daqui a pouco ele sai
e quebra alguma coisa
por aí.
Mas enquanto ele tá preso,
posso prosar
alguns verbos
que lhe digam respeito.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

(sem título)

Hoje, não quero escrever. Por que você viajou em palavras não ditas por essa tua boca suja & meu amor imaginado impossível vive intensamente. Sou carente, minha poesia, que é a vida, é triste. Sobre alegria, prefiro silenciar – as tristezas é que precisam ser colocadas pra fora.

Poema cuspido (...)

Tenho saudade
do que ainda não aconteceu,
o passado que não morreu,
e uma dor latejada
do que pode não vir a ser.
É o amor demais
dessa, tão sua, alma carinhosa
que me envolve
em jasmins e orquídeas
manchadas com o sangue
da tua menstruação,
tua contradição
que me acaricia
em momentos de solidão
inerentes ao exagero
que vivo no gerúndio.
Tenho também aquela raiva
de alguém que não sabe
o que vai acontecer,
o ciúme
inofensivo
de uma praga
chamada amor.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Na carreira

“pintar, vestir
virar uma aguardente
para a próxima função
rezar, cuspir
surgir repentinamente
na frente do telão
mais um dia, mais uma cidade
pra se apaixonar
querer casar
pedir a mão

saltar, sair
partir pé ante pé
antes do povo despertar
pular, zunir
como um furtivo amante
antes do dia clarear
apagar as pistas de que um dia
ali já foi feliz
criar raiz
e se arrancar

hora de ir embora
quando o corpo quer ficar
toda alma de artista quer partir
arte de deixar algum lugar
quando não se tem pra onde ir

chegar, sorrir
mentir feito um mascate
quando desce na estação
parar, ouvir
sentir que tatibitati
que bate o coração
mais um dia, mais uma cidade
para enlouquecer
o bem-querer
o turbilhão

bocas, quantas bocas
a cidade vai abrir
pr'uma alma de artista se entregar
palmas pro artista confundir
pernas pro artista tropeçar

voar, fugir
como o rei dos ciganos
quando junta os cobres seus
chorar, ganir
como o mais pobre dos pobres
dos pobres dos plebeus
ir deixando a pele em cada palco
e não olhar pra trás
e nem jamais
jamais dizer
adeus”

(in O grande Circo Místico, de Chico Buarque e Edu Lobo)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A filosofia física

Os dois estão sentados, no mesmo espaço, na canga que é a grama daquela praça.
– Na vida real – sentida, doída, vivida, humana afinal – não há espaço pro presente. O presente, enquanto tempo, é uma teoria gramatical. Invade a filosofia, a psicologia, é claro, mas é, sobretudo, gramatical, porque é sobre lá que incide o ponto de partida pra se elaborar pensamentos. Na vida real, o presente ou é passado ou é futuro. Já te explico. Isto, porque você pensa o presente, você planeja o presente, então ele tem caráter de futuro; e, do outro lado, se você tá no presente, o gerúndio, você tá fazendo, ele já passou, ele já é passado, tudo isso que eu falei já é passado, e não só no tempo gramatical que eu elaborei, persuasivamente, a minha frase, mas porque se você faz uma coisa, ela imediatamente passa, se torna passado.
– Gostei da ideia. Não tinha pensado dessa forma até agora. Mas o meu ponto de vista é divergente. Eu entendo esse teu pensamento, concordo aliás, mas acho que você exclui a complexidade que é viver o presente. Porque viver o presente é uma complexidade. E eu te explico. Pra se viver o presente é toda uma questão de sensibilidade e concentração. Sensibilidade, porque você precisa estar aberto ao que está acontecendo; concentração, no mesmo trilho, porque pra se internalizar o sentido, “sentido” entendido como aquilo que se sente, minimamente que seja, você, obviamente, precisa ter consciência dele e estar pensando nele. É uma questão de exclusividade. Você projeta pro momento, pro instante, a sua atenção. Você tem interesse em viver aquilo, e está disposto.
Os monólogos ganharam vida própria. Cada pensamento é uno, mas isto não exclui a possibilidade de se fundirem. Além do mais, pertencem a uma mesma pessoa: dois corpos não ocupam o mesmo espaço.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O ventre seco

“(...) 7. Farto também estou das tuas ideias claras e distintas a respeito de muitas outras coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que confesso aqui minha confusão, mas não conclua daí qualquer sugestão de equilíbrio, menos ainda que eu esteja traindo uma suposta fé na ‘ordem’, afinal, vai longe o tempo em que eu mesmo acreditava no propalado arranjo universal (que uns colocam no começo da história, e outros, como você, colocam no fim dela), e hoje, se ponho o olho fora da janela, além do incontido arroto, ainda fico espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir que está de pé.
(...)
10. Sabe, Paula, ainda que sempre atenta à dobra mínima da minha língua, assim como ao movimento mais ínfimo do meu polegar, fazendo deste meu canto o ateliê do desenhista que ia no dia-a-dia emendando traço com traço, compondo, sem ser solicitada, o meu contorno, me mostrando no final o perfil de um moralista (que eu nunca soube se era agravo ou elogio), você deixou a linha mestra que daria caráter ao teu rabisco. Estou falando de um risco tosco feito uma corda e que, embora invisível, é facilmente apreensível pelo lápis de alguns raros retratistas; estou falando da cicatriz sempre presente como estigma no rosto dos grandes indiferentes.
11. Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te agitam a cabeça. Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio. (...)”

(in Menina a caminho, páginas 64-66, de Raduan Nassar)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ensaio sobre quando o tempo fica à margem

Há tanto quero escrever uma carta pra você, evidenciando mentiras, dissertando sobre minha dieta de mau senso, sobre meu teórico suicídio amoroso; e esta está sendo a carta, porque desde quando você se tornou meu foco, ou, desde quando conversamos você virou poesia pra mim, você virou tudo porque desarrumou o aqui dentro e porque qualquer coisa era você; ai!, de quando descendo a rua, a ladeira que hoje é memória, voltei correndo em passos lentos pra casa, percebendo o verde do mato que tem naquela praça, o rosa da orquídea agarrada à árvore – imperceptível a olhos acostumados –, os degraus que eram todas aquelas ruas da distância que nos separava: poucas casas; a mentira do tio, da capoeira, do barbeiro, de tudo o que fosse pra me deixar mais tempo ao teu lado, como se o tempo pudesse querer morrer (o tempo não morre, ele é no gerúndio, e a nossa proximidade se tornou abismo); inventei pseudônimos, sufoquei vários papeis de tantas palavras que precisavam ser ditas e inventei algumas, inventei momentos futuros, o passado, o eu pra te ter por perto: eu não era torcedor, contei verdades, mas falava de futebol pra parecer menino moleque; descobri que podia me sentir bem – precisava te ter ao meu lado –, descobri que o amor é uma coisa escrota, ironicamente, porque escrevendo agora escrevo pieguices, besteiras, e ainda sim tenho coragem de tatuá-las neste papel, por mais que eu possa jogar ele fora a qualquer instante; o fogo que você acendeu, metáfora brega, não se apagou, sequer diminuiu; minto pra mim sempre pra não pensar em ti e gosto de pensar em ti, e odeio pensar, porque percebo que sempre sonho no que diz respeito ao teu nome, o teu nome que já não me arrepia mais, mas, ah, se eu imaginar a tua voz, o teu cabelo liso e o teu carinho falando comigo, se eu lembrar de você real e não do que me representa você... e de como é difícil lembrar o teu cheiro, como dói; você que hoje é a roupa que eu compro, você antes era o meu pensamento quando resolvia viver, você era o meu próprio eu; você me fez mau, eu não precisava de mais alguém – se você resolvesse viajar, eu nem levava roupas; depois de você, com os outros, aprendi que quando se vive o que se quer, você se percebe no outro; você beija o outro e, vivendo aquelas frestas de olho nariz cabelo sobrancelha pêlo orelha bochecha lábio, esquece de tudo; você foi a paixão que quebrou tudo: eu não sabia mais estudar, eu não sabia mais ser amigo, eu não sabia mais ser filho; aliás, de tudo fazia pra te ver, nem que fosse passar em frente a tua casa, num caminho absolutamente burro, nem que fosse fazer os amigos passarem em frente a tua casa, pra ver se você estava por lá, nem que fosse pegar o pé de uma flauta doce (aquela parte pequena no final da flauta sabe?) e uma flor amarela no chão suja, colocar esta dentro daquela, e sonhar a beleza do gesto de deixar na porta da tua casa, e eis que sonhando você chegou de carro com amigos, e eu sonhei mais um pouco pensando em destino – pensando em mentiras que desacredito; você era o assunto de qualquer hora, você era a hora pra qualquer assunto

eu morreria junto com você sem pensar
em qualquer outra pessoa & eu ainda penso
na possibilidade da gente fugir e deixar
o tempo, que é o futuro, à margem da nossa vida.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Fenômeno

você que foi
dieta de mau senso
pensamento suicida
hoje está sendo
o meu qualquer

terça-feira, 8 de junho de 2010

A sola das lágrimas

Eu não escuto mais
a tua voz. Teu silêncio
me vive, e vivo da nostalgia
doída que é não lembrar de ti.
Teu cheiro secou.
O meu encontro com ti são palavras
jogadas ao vazio
que é a distância que nos separa.
Sequer sinto saudades,
não tenho capacidade.
Capacidade, aliás, me falta pra sonhar:
suguei todas as gotas
de sonhos com você.
A gente se encontra,
a gente se toca,
a gente se fala,
a gente se sente,
(a gente se ama
em todos os silêncios
que é o nosso corpo)
e hoje me lembro de nada.
Construí a estória
em todos os minúsculos detalhes,
inventei destinos, criei recomeços;
o tempo lento
– das horas, dias, meses sem você –
te apagou de mim. Hoje,
as pessoas perguntam se você existiu.

Vou inventar outra palavra pra me referir a ti:
teu nome não me arrepia mais.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A obscena senhora D

“que foi Hillé?
o olho dos bichos, mãe
que é que tem o olho dos bichos?
o olho dos bichos é uma pergunta morta.
E depois vi os olhos dos homens, fúria e pompa, e mil perguntas mortas e pombas rodeando o oco e vi um túnel extenso forrado de penugem, asas e olhos, caminhei dentro do olho dos homens, um mugido de medos e garras sangrentas segurando ouro, geografias do nada, frias, álgidas, vórtice de gentes, os beiços secos, as costelas à mostra, e rodeando o vórtice homens engalanados fraque e cartola, de seus peitos duros saíam palavras Mentira, Engodo, Morte, Hipocrisia (...)”

(in A obscena senhora D, páginas 30 e 31, de Hilda Hilst)

Crônica egocêntrica

porque quando não escrevo, não me percebo
me sinto falta de mim
não me noto nem me aconselho
me calo frente à qualquer ideia
que poderia surgir
e desse silêncio todo me enlouqueço
me transmuto
em palavras mortas, enterradas
em tudo o que poderia brotar
e não surge, sequer existe
nem vive: desacontece

e por que quando escrevo
das frases que penso
posso até não tatuar no papel
mas elas existiram elas viveram elas aconteceram
e do que se passou nada será
apagado
o passado vai ser o eterno
lembrar
de uma prisão e de um aprendizado
lembrança indesejada
ou querida.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Meu mundo

"Conforto alucinante, tranquilidade na clareira do caos
O ponteiro, ele rodou mais rápido no mesmo relógio de ontem
O que as horas guardam nos espaços do contra-tempo?
A mulher?
(...)
O desejo é um tempo parado
É quando se trocam as datas dos bichos e das flores
É quando aumenta a rachadura da velha parede
É quando se vira a folha, a folha da história
É quando se pinta um fio branco na cabeleira preta
É quando se endurece o rastro de sorriso
No canto dos olhos
Eu sei que a viagem é longa
A voz vai e vem
Você 'tá aí?
Você 'tá aí?
Ei, voce está aí?
Vontade de abraçar o infinito"

A dor do Lirinha me puxa lágrimas pelos olhos.

(in Certa Manhã, Acordei de Sonhos Intranquilos, de Otto)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Líricos – I

Abri os olhos e não os fechei mais. Lacrimejei.
Por alguns segundos, meu nexo cérebro-retina funcionou
em velocidade lenta,
tanto quanto demorei pra enxergar.
E no embaçado vi cinza
teu corpo todo em negação.
As costas,
o ar denso do amor cansado,
sequer te sentia.
Te tocava e não sentias.
Te tinha e já não eras mais minha.
Fechei os olhos. A lágrima espremida escorregou
pelo rosto suado
do nervosismo incontido
que é te ter por perto.
E não a sequei. Marcou fria a face.


(Segui teus conselhos e chorei a dor.)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

(po)ética do louco

não quero procurar por ti
e quero que toda vez seja esse choque
de almas que não se conhecem
e fugas de olhar
– vivi um sonho que sonho só
contigo

não quero mais procurar por ti
e quero que toda vez seja essa falta de ar
que me falta o ar todo
e já não respiro mais
– morri em devaneios porque existo só
pra ti

domingo, 9 de maio de 2010

Pretérito

O que havia de ser luz, apagou.
O que havia de ser, brochou.
O que havia, acabou.

Será que tu sabes que teu olhar me vive em dor?

Reflexo da Promessa

colorindo
o diário árido
que a vida vai sendo

num processo
(mal)amado de dor
e despudor

e o resultado
enobrecendo
o enxugado


Escrito espontaneamente após a leitura da linda Promessa (http://emgolesacidos.blogspot.com/2010/04/promessa.html).

domingo, 25 de abril de 2010

curiosear

te sonho ainda
em meus dias noturnos
e não acordo amanhã

O genocídio razoável

abri os olhos
fechei os olhos
abri os olhos
fechei os olhos
e era um sonho. Havia
de ser um sonho.

Os sonhos morrem quando a consciência atrapalha.

sábado, 17 de abril de 2010

Desca(n)so

acaso tenha preguiça
logo se ex-preguice


os verbos dissonantes que te fazem
em mim
são expurgados
por sentimentos triviais
e disto não tenho dúvidas

porque minha metáfora é inocente e breve
de vida curta que acaba
nunca, e meus haikais
servem para nada

as crônicas mortas
não foram sepultadas, tampouco cremadas

os poemas enxutos de sempre secaram

obviedade crítica paira
no chão qual raiz, inventada a fim de me ser
no gerúndio.

Depressão (ou A morte do sonho)

Da timidez carinhosa
que cobre o rosto,
todo o rosto, o corpo,
que envaidece silêncio.
Solidão unilateral
de uma vontade
só. Sendo humano,
pó de mentiras ao vento,
máscaras e desvontades,
e linhas que separam o ar
do vazio

sexta-feira, 12 de março de 2010

Hoje de madrugada

“(...) Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: “vim em busca de amor” estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: “responda” ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se de seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão no alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, havia até verdade naquela ponta de teatralidade (...)”.

(in Menina a caminho, páginas 54-56, de Raduan Nassar)

domingo, 7 de março de 2010

Futuros amigos

a gente que não vive agora
sobrevive amanhã

hoje, o amor inadmissível
barreira invisível, quiçá
impossível

amanhã num porvir palpável
a concretude de não te ter
em silêncio

porque se te amo
é só em sonho, amiga

acaso te queira, acaso te tenha
amanhã que convenha

A mentirosa

Toca o telefone,
a menina atende esperançosa
e logo esquece
o mundo. O menino
em certo momento pergunta do tal silêncio
que ecoa palavras
e a menina, assustada,
no banheiro em plena masturbação
pausada, não sabe o que falar.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O livro de Ésquilo e o ônibus da madrugada (ou A crônica de um paulistano)

Desesperado, com medo de ser estuprado pelo gay bombado e, diga-se extremamente de passagem, negro, me transmuto na mentira de ir embora. Teatralizo e me recomponho aleatoriamente em outro assento. Sento. E invento maneiras de olhar para trás sem olhar para trás, sem ao menos demonstrar qualquer fração de movimento que possa evidenciar meu desespero ou minha – agora próxima – rota de fuga, seja olhando pelas estribeiras do chumaço de cabelo do lado esquerdo ou do chumaço de cabelo do lado direito, seja olhando de canto de olho com a cabeça no mesmíssimo lugar pelo reflexo do vidro, seja olhando para trás na mais forçada arte de fingir; tudo isso que é bem visível aos olhos de um espectador um pouco atento quanto invisível à esperança de mascarar inquietude. Aceito a condição e enraízo, a fim de inventar mais uma maneira de encenar em minúcias, a palma suja de ônibus de minhas mãos no botão que cenografará meu adeus.
Em uma epifania, esqueço e enxergo tão-somente a vida do indivíduo desconhecido à minha frente. Enxergo, em verdade, as migalhas – buscando alguma lógica – da estória que vou dar a esta personagem: o velho dos seus 50 anos em um ônibus da madrugada que lê um livro de Ésquilo.
A epifania morre.
Corta a cena. Transfere o frame para dois dias depois.
O intelectual esculpido em mendigarias: o outro velho dos seus 50 anos em um ônibus quase ao crepúsculo que canta Martinho da Vila à la Seu Jorge. E faz a diversão do público alvo que não estava querendo assistir à peça alguma. As piadas bêbedas de alguém que só precisa contar sua História.
O devaneio morre.
Esquece o futuro. Volta para a realidade.
Minha mão continua apalpando o mesmo ainda não apertado botão do meu adeus. Fingindo descanso. Eis que chega a tão adiada hora e aperto o maldito botão e volto à encenação. Agora o impasse é outro, devo sair decidido e sem fazer alarde; a sutileza de uma brutalidade.
E tudo não passou da cabeça de um paulistano endoidecido pelo medo de ser assaltado. Mais uma estória que poderia ter sido esquecida.

sábado, 13 de fevereiro de 2010


(Maria Bethânia cantando Paulinho da Viola, "Coração vulgar", em 1969, num documentário francês, "Saravah", de Pierre Barouh)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Por amor

quando estou com você
não sinto você
me esqueço
em mim
ou da vida ou dessa vida
que se esvai
rápido
que acaba
e já invento e já nem lembro
do teu perfume
impregnado em minhas imaginações
em meus tesões
que no fim das contas acabaram
por me condenar à tristeza eterna
de um dia sem você
forçado
por que a distância é necessária
quando se não quer o que se quer

e da já antiga filosofia
de um dia
que em egoísmo me esqueço até de mim
que só me lembro refletido em teus olhos
e da tua voz esperadamente aguda e bêbada
confessando impropérios
vontades profundas que se externalizam
por cerveja demasiada

é que minha cabeça me consola
e minha cabeça me matou
por amor, vá lá.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

(poema-canção-clipe) Nome

"algo é o nome do homem
coisa é o nome do homem
homem é o nome do cara
isso é o nome da coisa
cara é o nome do rosto
fome é o nome do moço
homem é o nome do troço
osso é o nome do fóssil
corpo é o nome do morto
homem é o nome do outro"

(in Nome, de Arnaldo Antunes)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A incivilização de todo dia

é na nossa praia deserta
que o verbo áspero do amor acontece
e só lá para nós, restrito
em nossa liberdade
pessoal
por que quando estou lá com você me esqueço
em nossas núpcias
e nem me percebo mais
e nem me percebo mais sendo sentido
a não ser quando teu olho me maquia
em silêncios de face risonha

de tão natural, intensa

relação de um animal
que não quer mais pensar.

sábado, 23 de janeiro de 2010

eterno

morte é morte
poder não ver a noite
questão de sorte

lúdico

dia nasceu
noite morreu
a lua vira o sol

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

(intitulável)

Lembro de ti de dia.
À noite, ti não existe.