foto de Spencer Tunick

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O livro de Ésquilo e o ônibus da madrugada (ou A crônica de um paulistano)

Desesperado, com medo de ser estuprado pelo gay bombado e, diga-se extremamente de passagem, negro, me transmuto na mentira de ir embora. Teatralizo e me recomponho aleatoriamente em outro assento. Sento. E invento maneiras de olhar para trás sem olhar para trás, sem ao menos demonstrar qualquer fração de movimento que possa evidenciar meu desespero ou minha – agora próxima – rota de fuga, seja olhando pelas estribeiras do chumaço de cabelo do lado esquerdo ou do chumaço de cabelo do lado direito, seja olhando de canto de olho com a cabeça no mesmíssimo lugar pelo reflexo do vidro, seja olhando para trás na mais forçada arte de fingir; tudo isso que é bem visível aos olhos de um espectador um pouco atento quanto invisível à esperança de mascarar inquietude. Aceito a condição e enraízo, a fim de inventar mais uma maneira de encenar em minúcias, a palma suja de ônibus de minhas mãos no botão que cenografará meu adeus.
Em uma epifania, esqueço e enxergo tão-somente a vida do indivíduo desconhecido à minha frente. Enxergo, em verdade, as migalhas – buscando alguma lógica – da estória que vou dar a esta personagem: o velho dos seus 50 anos em um ônibus da madrugada que lê um livro de Ésquilo.
A epifania morre.
Corta a cena. Transfere o frame para dois dias depois.
O intelectual esculpido em mendigarias: o outro velho dos seus 50 anos em um ônibus quase ao crepúsculo que canta Martinho da Vila à la Seu Jorge. E faz a diversão do público alvo que não estava querendo assistir à peça alguma. As piadas bêbedas de alguém que só precisa contar sua História.
O devaneio morre.
Esquece o futuro. Volta para a realidade.
Minha mão continua apalpando o mesmo ainda não apertado botão do meu adeus. Fingindo descanso. Eis que chega a tão adiada hora e aperto o maldito botão e volto à encenação. Agora o impasse é outro, devo sair decidido e sem fazer alarde; a sutileza de uma brutalidade.
E tudo não passou da cabeça de um paulistano endoidecido pelo medo de ser assaltado. Mais uma estória que poderia ter sido esquecida.

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