foto de Spencer Tunick

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Eruditas

II.
te compro um dia e nunca mais
abro, pra manter a forma
e a curiosidade do conteúdo

(sem título)

& era eu e você o que se encontrava naquele quarto escuro, de porta trancada, ao som do nosso silêncio ansioso, esperando o barulho das outras duas portas fechando, pra você, só então, cautelosa, assim que ouvisse o pedido em palavras macias, descer do beliche e se roçar em mim – por que a gente se descobria pelos pêlos mais sutis do corpo – numa fúria interna que era o gozo descontrolado manchando o carpete do teu quarto, e então a gente passava na cozinha, pegava dois copos d’água, um pra mim e outro pra limpar o chão, pra depois, insaciáveis, a gente se recobrir no corpo do outro pelas horas que sobravam

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A crônica queria ser poema

tudo isto
que escrevi num parágrafo só
vai virar poema

Eruditas

I.
ah, Lírio de argila
qu’eu guardo na gaveta
mais esquecida

a tua contradição
me anima solidão

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O poema do acaso

eu queria ser nordestino
eu queria ser sulista
eu queria ser de fora
pra ver a Aurora
Boreal

mas mal posso ser
meu

Prólogo

Alô, alô. Testando. Alô. 1, 2. Testando, testando.
(Tá funcionando, já posso falar? – pensou).

Aqui no microfone
da cabeça
penso ideias
que não deveriam ser ditas
senão para pessoas
em especial.
Mas como a vida me ensinou
a não me poupar, não poupo
inclusive vocês.
Agora, com exclusividade,
deixo algumas ideias
suspensas
nesse mar
de loucos.

O animal
que mora dentro de mim
já quebrou alguns cadeados
e continua com raiva.
Acho que tanta pressão
nessa prisão
não fez bem a ele.
Enfim, daqui a pouco ele sai
e quebra alguma coisa
por aí.
Mas enquanto ele tá preso,
posso prosar
alguns verbos
que lhe digam respeito.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

(sem título)

Hoje, não quero escrever. Por que você viajou em palavras não ditas por essa tua boca suja & meu amor imaginado impossível vive intensamente. Sou carente, minha poesia, que é a vida, é triste. Sobre alegria, prefiro silenciar – as tristezas é que precisam ser colocadas pra fora.

Poema cuspido (...)

Tenho saudade
do que ainda não aconteceu,
o passado que não morreu,
e uma dor latejada
do que pode não vir a ser.
É o amor demais
dessa, tão sua, alma carinhosa
que me envolve
em jasmins e orquídeas
manchadas com o sangue
da tua menstruação,
tua contradição
que me acaricia
em momentos de solidão
inerentes ao exagero
que vivo no gerúndio.
Tenho também aquela raiva
de alguém que não sabe
o que vai acontecer,
o ciúme
inofensivo
de uma praga
chamada amor.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Na carreira

“pintar, vestir
virar uma aguardente
para a próxima função
rezar, cuspir
surgir repentinamente
na frente do telão
mais um dia, mais uma cidade
pra se apaixonar
querer casar
pedir a mão

saltar, sair
partir pé ante pé
antes do povo despertar
pular, zunir
como um furtivo amante
antes do dia clarear
apagar as pistas de que um dia
ali já foi feliz
criar raiz
e se arrancar

hora de ir embora
quando o corpo quer ficar
toda alma de artista quer partir
arte de deixar algum lugar
quando não se tem pra onde ir

chegar, sorrir
mentir feito um mascate
quando desce na estação
parar, ouvir
sentir que tatibitati
que bate o coração
mais um dia, mais uma cidade
para enlouquecer
o bem-querer
o turbilhão

bocas, quantas bocas
a cidade vai abrir
pr'uma alma de artista se entregar
palmas pro artista confundir
pernas pro artista tropeçar

voar, fugir
como o rei dos ciganos
quando junta os cobres seus
chorar, ganir
como o mais pobre dos pobres
dos pobres dos plebeus
ir deixando a pele em cada palco
e não olhar pra trás
e nem jamais
jamais dizer
adeus”

(in O grande Circo Místico, de Chico Buarque e Edu Lobo)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A filosofia física

Os dois estão sentados, no mesmo espaço, na canga que é a grama daquela praça.
– Na vida real – sentida, doída, vivida, humana afinal – não há espaço pro presente. O presente, enquanto tempo, é uma teoria gramatical. Invade a filosofia, a psicologia, é claro, mas é, sobretudo, gramatical, porque é sobre lá que incide o ponto de partida pra se elaborar pensamentos. Na vida real, o presente ou é passado ou é futuro. Já te explico. Isto, porque você pensa o presente, você planeja o presente, então ele tem caráter de futuro; e, do outro lado, se você tá no presente, o gerúndio, você tá fazendo, ele já passou, ele já é passado, tudo isso que eu falei já é passado, e não só no tempo gramatical que eu elaborei, persuasivamente, a minha frase, mas porque se você faz uma coisa, ela imediatamente passa, se torna passado.
– Gostei da ideia. Não tinha pensado dessa forma até agora. Mas o meu ponto de vista é divergente. Eu entendo esse teu pensamento, concordo aliás, mas acho que você exclui a complexidade que é viver o presente. Porque viver o presente é uma complexidade. E eu te explico. Pra se viver o presente é toda uma questão de sensibilidade e concentração. Sensibilidade, porque você precisa estar aberto ao que está acontecendo; concentração, no mesmo trilho, porque pra se internalizar o sentido, “sentido” entendido como aquilo que se sente, minimamente que seja, você, obviamente, precisa ter consciência dele e estar pensando nele. É uma questão de exclusividade. Você projeta pro momento, pro instante, a sua atenção. Você tem interesse em viver aquilo, e está disposto.
Os monólogos ganharam vida própria. Cada pensamento é uno, mas isto não exclui a possibilidade de se fundirem. Além do mais, pertencem a uma mesma pessoa: dois corpos não ocupam o mesmo espaço.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O ventre seco

“(...) 7. Farto também estou das tuas ideias claras e distintas a respeito de muitas outras coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que confesso aqui minha confusão, mas não conclua daí qualquer sugestão de equilíbrio, menos ainda que eu esteja traindo uma suposta fé na ‘ordem’, afinal, vai longe o tempo em que eu mesmo acreditava no propalado arranjo universal (que uns colocam no começo da história, e outros, como você, colocam no fim dela), e hoje, se ponho o olho fora da janela, além do incontido arroto, ainda fico espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir que está de pé.
(...)
10. Sabe, Paula, ainda que sempre atenta à dobra mínima da minha língua, assim como ao movimento mais ínfimo do meu polegar, fazendo deste meu canto o ateliê do desenhista que ia no dia-a-dia emendando traço com traço, compondo, sem ser solicitada, o meu contorno, me mostrando no final o perfil de um moralista (que eu nunca soube se era agravo ou elogio), você deixou a linha mestra que daria caráter ao teu rabisco. Estou falando de um risco tosco feito uma corda e que, embora invisível, é facilmente apreensível pelo lápis de alguns raros retratistas; estou falando da cicatriz sempre presente como estigma no rosto dos grandes indiferentes.
11. Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te agitam a cabeça. Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio. (...)”

(in Menina a caminho, páginas 64-66, de Raduan Nassar)